“(...) the relation of the Other to me would tend to appear as sadomasochistic, if it did not cause us to fall prematurely out of the world – the one region where “normal” and “anormaly” have meaning.”
Maurice Blanchot
The writing of the disaster
Fotografia, momento eternizado, cristalizado pela lente e pela luz da modernidade. O flash na essência efêmera de um sorriso, de uma lágrima, de uma tragédia, desenha uma trajetória utilitária, com a fotografia de propaganda e popularização política, ou humanística, transformando-se em objeto artístico e pessoal. Imagens que acabaram tornando-se arquivo histórico, referências para a arte contemporânea. Desde o séc. XIX tem-se desenvolvido esta estranha tecnologia de reproduzir as imagens tal qual vemos pela entrada de luz por um pequeno orifício numa caixa preta. O que não cessa jamais de evoluir. Hoje parece que a fotografia impressa virou artigo de galeria. O álbum como nossas mães faziam, ficou como recordação de décadas passadas, digitalizado para que não seja comido pelas traças. Representar virou obsessão. Como diz Márcio Seligmann-Silva “queremos registrar o instantâneo do grito, registrar o temor visceral, o frio na espinha, nosso grito de horror primevo”. Em nossa cultura de traumas e recalques, a fotografia passa a ser concebida como um “traço do real” e não mais como a definição de espelho do real, ou por uma ótica romântica, como transformação do real.
Mais do que falar de fotografia, quero falar de suas provocações. Como a escritura, a fotografia não se configura na ingenuidade, e se se configurou, foi material somente de álbum de família. Ela vai de encontro certeiro exatamente no ponto visceral do recalque. Desde querer dizer alguma coisa, ou denunciar crueldades, provocar tumultos e revoltas até reproduzir a imagem pela imagem, experimentos com a própria fotografia como obra de arte, esta técnica muito se transformou carregando o olhar do expectador de um solo inundado de signos até o sertão completo da abstração.
Uma das fotografias que mais me provocou nos últimos tempos foi esta:
O Beijo (1982)
Primeiro a fotografia, depois o fotógrafo me ajudaram a pensar em questões como o abjeto, a beleza do horror, e o corpo como material para a obra de arte. Não se trata mais de usar o corpo como referência, como performance, a action painting de Jackson Pollock, a body art tribal ou dos estúdios de tatuagem contemporâneos, é o corpo material. Nada de tela, tinta, madeira ou bronze. É o corpo. “A base sobre a qual se desenvolveu e se assenta o discurso simbólico da linguagem” (como diz KRISTEVA 1980: 87 apud SELIGMANN-SILVA) O corpo abandonado, mutilado, estranho aos olhos de quem vê beleza no padrão comum, o bizarro.
O fotógrafo nova iorquino, nascido em 1939 de pais religiosos, utiliza cadáveres e pessoas com anomalias como manequins de suas composições. Para Julia Kristeva o “cadáver, que vem do latim cadere, cair, tornou-se irremediavelmente uma queda, é dejeto, é morte; ele perturba mesmo aquele que confronta sua fragilidade e flacidez”, “é a poluição fundamental; um corpo sem alma” (KRISTEVA, 1982:3 & KRISTEVA apud Seligmann-Silva, 2005:39). O fotógrafo prefere o que se chama de feio e repugnante, e o cadáver, manifestação privilegiada do abjeto. Apresentado em estética mórbida, elucida a dicotomia horror X beleza; o paradoxo da morte, em pedaços, em fluidos que ultrapassam a barreira frágil da vida no corpo, lábios cinzas e coroa de flores em plena cor.
Harvest - Death Mask 1986
Still life
A beleza para Lyotard ( no ensaio The Inhuman), demanda mais do que somente respeitar as regras de composição, ela requer um “algo a mais” anterior, também chamado de gênio ou algo incompreensível e inexplicável, um presente de Deus, um fenômeno fundamentalmente escondido que pode ser reconhecido somente pelo efeito naquele a quem se endereça.
Tal beleza se apresenta ao menino que vê os úmidos olhos de uma recém morte, a vida numa cabeça decapitada. Talvez tenha sido esta a imagem emblemática que povoou o imaginário de Witkin desde que viu a cabeça de uma grota rolar aos seus pés após um acidente em frente à porta de casa.
Cito o próprio: “aconteceu num Domingo quando minha mãe estava acompanhando meu irmão gêmeo e eu para fora do apartamento onde morávamos. Estávamos indo à igreja. Enquanto descíamos o hall até a saída do prédio, ouvimos uma inacreditável colisão misturada com gritos e chamados por socorro. O acidente envolveu três carros, cada qual com uma família. De algum modo, na confusão eu não estava mais segurando a mão da minha mãe. No lugar onde eu estava, pude ver algo rolando de uma da fendas dos carros. Aquilo parou no meio-fio à frente dos meus pés. Era a cabeça de uma garotinha. Eu me abaixei para toca-la, para falar com ela, mas antes que eu pudesse toca-la alguém me tirou dali.”
O rosto da garotinha, ainda quase viva, ali aos pés de outra criança pode ter-lhe parecido curioso e até belo. Atrevo-me a dizer que nesta experiência do abjeto, Witkin assegura cuidadosa e paradoxalmente a beleza. Para Julia Kristeva: “não é a falta de limpeza ou saúde que causa o sentimento de abjeto, mas o que incomoda identidade, sistema, ordem. O que não respeita fronteiras, posições e regras” (Powers of Horror, 1982). Transgressor? Pode ser, mas sem militantismo piegas. É a arte do horror em busca do prazer da beleza.
Interrupted reading in Paris, 1999
Arranhões e cera quente para a fotografia, faz a face envelhecida, cuidados de sensibilidade atormentada pela guerra, transferida da lente para o filme e para a revelação abaixo dos pés do oficial. O fotógrafo faz intervenções tanto nos negativos quanto nos corpos e vai poluindo, desgastando, desfocando; etapas agressivas necessárias para o efeito final.
Woman once a Bird
O feio ajuda despertar o horror que é necessário para a experiência do sublime e do abjeto, que se transferem na modernidade. O hermafrodita, o obeso mórbido, o aleijado, o mutilado, amordaçado, desfigurado, compõem esta galeria de modelos posando em cenários românticos e mórbidos. Embora os grandes pintores da história buscavam limpar a postura artificial de seus modelos, Witkin parece perseguir o personagem artificial de um modelo vivo, ou morto. São de fato dramas num palco forjado. O teatro do necrotério sadomasoquista representa imagens conhecidas.
A mitologia é também tema freqüente neste teatro freak.
À medida que a forma determina a realidade, o corte ou a deformidade passa a ser a representação do absurdo, do desastre. Neste ponto, o olho do artista desvela as imperfeições buscando nas formas carnavalescas e até circenses do horrendo, provocar o tão desejado sentimento sublime por onde a arte transita livremente.
No ensaio intitulado o Inumano, Lyotard diz que “as imperfeições e distorções do gosto e até da feiúra têm seu espaço no efeito chocante. Arte não imita a natureza, ela cria um mundo à parte (...) o monstruoso e o deformado têm seus direitos porque podem ser sublimes” (LYOTARD, 1991:97).
Por outro lado, vem a obsessão pela purificação do abjeto. Uma certa perseguição pela salvação destas almas danadas na blasfêmia. A boa piedade alheia, jogaria-se ao limbo para ser a luz dos que vivem no breu do castigo divino. No ensaio, O Local da Diferença, Marcio Seligmann-Silva explica que contra Platão, “Aristóteles afirmava que a mímeses trágica tem o poder de depuração das emoções de piedade e de temor, e dentro da perspectiva da teoria poética clássica, o abalo – em termos conceituais, o movere – provocado pela representação de cenas chocantes, que geram pena e medo, poderia ter uma conseqüência tanto prazerosa quanto útil”.
Joel-Peter Witkin começou a fotografar aos dezessete anos, quando resolveu fazer o retrato de um rabino que afirmava ter visto e conversado com Deus. Desde muito pequeno, sempre incentivado pelo pai que lhe mostrava fotos “estranhas” de revistas. Entre as várias experiências incomuns foi o exército com a missão de documentar as mortes acidentais ocorridas nos treinamentos militares.
Recebeu o titulo de Master of Arts pela Universidade do Novo México em 1976.
Quando fez sua primeira exposição individual em 1980, em Nova York, recebeu elogios extremados pela profundidade temática de sua obra, calcada nos temas da dor e da morte e apoiada por referências clássicas. Mas também foi atacado como sensacionalista, despudorado, blasfemo e outros adjetivos menos respeitáveis. Hoje vive e trabalha em Albuquerque – Novo México.